William Mendonça
POESIA, PROSA, MÚSICA E TEATRO
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ETERNIDADE

     A insônia é o prato preferido em minha ceia noturna. Acordo e espero o cansaço vencer os sentidos – mas nem sempre a batalha é rápida. 
     Você, enquanto isso, dorme – um sono que se equilibra entre o leve e o agitado. Espira como se o tempo andasse ao passo das nuvens preguiçosas do outono. Sonha. 


     Estamos descendo, lentamente, uma encosta. Você como um felino de passo manso e certeiro. Eu, apenas um homem. 
     A paisagem parece estranha. Um entardecer que faz o Sol bailar sobre o oceano. Posso ouvir canções que mais parecem ecos. Talvez sejam. 
     Na base do penhasco, as pedras convidam a um passeio perigoso, em que não pode haver deslizes. É a primeira vez que vejo pedras tão perto do mar. Posso tocar a água, que parece mais viva do que os rios e se move, sinuosa, em um mágico jogo de sedução. 
     Você contempla. O povo das terras profundas quase nunca vê o mar. Há riscos na caminhada. E há lendas – poucos retornam. 
     - Vale a pena o perigo, Walah. Cada vez que ouvia histórias sobre o mar, imaginava coisas. Mas ele é tão ... 
     - Vivo! 
     - É, ele parece dançar. 
     - Nós quebramos muitas regras vindo aqui, Via. Parece que estamos rompendo paredes de vidro. Como vamos juntar os cacos? 
     - Não vamos. Isto aqui é melhor, não percebe? Não somos mais apenas “o povo das terras profundas”. Somos caminhantes – como os antigos. 
     - Pelo menos chegamos bem, até aqui ...
Você já não me ouve. Contemplar aquele ser que parece não ter fim é mais importante, agora. Seus olhos estão vazados pelo desejo de ir mais além. 
     Eu só sinto a opressão do penhasco às minhas costas e a imensidão azul, que tenta me dominar. Fico apegado às terras em que nasci. 
     - Há uma caverna logo ali, Walah. Vamos ver se encontramos seres do mar. 
     - Nunca estivemos lá. Pode haver perigos ... 
     - Nunca estivemos aqui também, medroso. Tudo pode acabar a qualquer momento. O mundo é um caldeirão em que tudo ferve e se modifica. Não podemos ter medo. 
     Parece que uma eternidade aqui toma corpo e pode até me tocar – acariciar ou ferir. A caverna guarda em si todas as histórias que o mar trouxe – dias e dias – de lugares distantes. 
     Você sempre sentiu o tempo menos do que eu, ou de uma forma diferente. Parece que não se importa com as vozes nem com as imagens que cobrem o escuro da caverna e eternizam o tempo. Apenas contempla. 
     - Veja, Walah. O que são estas pedras ocas? 
     - Deixe-me ver ... 
     - Escute. Há sons dentro delas. Uma canção distante ... 
     - Por Deus, Via! Será magia? 
     - Não, não. Isto vem do mar. 
     - Olhe! Há potes aqui. 
     Eles estão fechados – vedados. Em sua curiosidade, você quer saber o que contêm. Eu também. 
     - Papéis! Ah! Nunca pensei que fosse encontrar coisa parecida. O que dizem, Walah. 
     - É a língua antiga. Sei só algumas coisas. 


     É uma história de amor, em uma época de guerra. Um homem e uma mulher se esconderam aqui, nesta mesma caverna, quando a destruição do mundo começou. 
     - Destruição? 
     - É o que diz, Via. Eles moravam aqui perto e ouviram explosões. Havia notícias de uma guerra que envolvia o mundo inteiro. 
     - O mundo destruído? Mas ele está aqui, perfeito. O que aconteceu com eles? 
     - Passaram aqui três dias, lembrando cada minuto de suas vidas e cantando. Ele escrevia tudo o que lembravam e guardava nos potes. 


     Como eles, nós passamos três dias nesta caverna. Lendo as vidas de pessoas que aqui estiveram em outra Era, conversando sobre o mundo, sobre nós, e comendo as plantas que o mar nos trazia. 
     O gosto do tempo enche estas paredes úmidas e cada palavra escrita, naquela língua ancestral, parece estar impressa na caverna. Aqui há um pedaço do mundo que eu e você não conhecemos. 
     O mundo havia acabado, então ... 
     Nas terras profundas, acreditava-se que nós descendíamos da raça que vencera uma grande guerra, que envolveu bilhões de pessoas. Mas não se falava que o mundo havia sido destruído ... E nós éramos tão poucos! Onde estariam os bilhões derrotados? 


     No terceiro dia, o mar começa a invadir violentamente a caverna. Envolvidos, como estamos, não percebemos a fúria com que ele lutava para guardar aquele segredo. O mar veio, e tomou de assalto a caverna. As saídas estão, agora, fechadas, e nós recuamos até uma parede em que um visgo inexplicável nos prende. 
     - O mar vai nos engolir, Walah. 
     - Como aconteceu com o homem e a mulher daquela história. 
     - Mas nós não vamos deixar nada para os outros, como eles fizeram. Ninguém vai saber que estivemos aqui. 
     - Ah! Via. Alguém vai saber. O tempo anda a favor da história, e não contra ela.
Sentamos e cantamos as músicas que aprendemos na infância até o mar tomar conta de tudo e nos envolver como se a caverna fosse um útero, grávido de eternidade. 


     Permaneço na insônia, enquanto o frágil equilíbrio do seu sono se rompe. Você acorda, como se nascesse novamente ... 
     - Que sonho estranho! 
     Você, então, se fez silêncio. E contempla. 
     - O mar tomava conta de tudo ... tudo ... Eu e você estávamos morrendo, sei lá – nascendo de novo ... Mas era outra época. 
     - Fique calma! Por mais real que pareça, foi só um sonho. 
     Não conseguimos dormir mais. 
     - Ligue a TV. Pode estar passando alguma coisa interessante. 
     - Eu ligo, e o noticiário diz que o mundo acabou. Está em guerra. O fim de tudo que construímos, o quase. 
     As explosões começam e agora estão perto ... Nosso tempo é pouco.
Muito pouco. 


     Os próximos três dias sem dormir serão nossa Eternidade ... 


(Parte do livro "Viajante Noturno", de William Mendonça, disponível para download gratuito no site. Direitos reservados.)
 
William Mendonça
Enviado por William Mendonça em 04/05/2007
Alterado em 17/05/2021
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