ETERNIDADE
A insônia é o prato preferido em minha ceia noturna. Acordo e espero o cansaço vencer os sentidos – mas nem sempre a batalha é rápida.
Você, enquanto isso, dorme – um sono que se equilibra entre o leve e o agitado. Espira como se o tempo andasse ao passo das nuvens preguiçosas do outono. Sonha.
Estamos descendo, lentamente, uma encosta. Você como um felino de passo manso e certeiro. Eu, apenas um homem.
A paisagem parece estranha. Um entardecer que faz o Sol bailar sobre o oceano. Posso ouvir canções que mais parecem ecos. Talvez sejam.
Na base do penhasco, as pedras convidam a um passeio perigoso, em que não pode haver deslizes. É a primeira vez que vejo pedras tão perto do mar. Posso tocar a água, que parece mais viva do que os rios e se move, sinuosa, em um mágico jogo de sedução.
Você contempla. O povo das terras profundas quase nunca vê o mar. Há riscos na caminhada. E há lendas – poucos retornam.
- Vale a pena o perigo, Walah. Cada vez que ouvia histórias sobre o mar, imaginava coisas. Mas ele é tão ...
- Vivo!
- É, ele parece dançar.
- Nós quebramos muitas regras vindo aqui, Via. Parece que estamos rompendo paredes de vidro. Como vamos juntar os cacos?
- Não vamos. Isto aqui é melhor, não percebe? Não somos mais apenas “o povo das terras profundas”. Somos caminhantes – como os antigos.
- Pelo menos chegamos bem, até aqui ...
Você já não me ouve. Contemplar aquele ser que parece não ter fim é mais importante, agora. Seus olhos estão vazados pelo desejo de ir mais além.
Eu só sinto a opressão do penhasco às minhas costas e a imensidão azul, que tenta me dominar. Fico apegado às terras em que nasci.
- Há uma caverna logo ali, Walah. Vamos ver se encontramos seres do mar.
- Nunca estivemos lá. Pode haver perigos ...
- Nunca estivemos aqui também, medroso. Tudo pode acabar a qualquer momento. O mundo é um caldeirão em que tudo ferve e se modifica. Não podemos ter medo.
Parece que uma eternidade aqui toma corpo e pode até me tocar – acariciar ou ferir. A caverna guarda em si todas as histórias que o mar trouxe – dias e dias – de lugares distantes.
Você sempre sentiu o tempo menos do que eu, ou de uma forma diferente. Parece que não se importa com as vozes nem com as imagens que cobrem o escuro da caverna e eternizam o tempo. Apenas contempla.
- Veja, Walah. O que são estas pedras ocas?
- Deixe-me ver ...
- Escute. Há sons dentro delas. Uma canção distante ...
- Por Deus, Via! Será magia?
- Não, não. Isto vem do mar.
- Olhe! Há potes aqui.
Eles estão fechados – vedados. Em sua curiosidade, você quer saber o que contêm. Eu também.
- Papéis! Ah! Nunca pensei que fosse encontrar coisa parecida. O que dizem, Walah.
- É a língua antiga. Sei só algumas coisas.
É uma história de amor, em uma época de guerra. Um homem e uma mulher se esconderam aqui, nesta mesma caverna, quando a destruição do mundo começou.
- Destruição?
- É o que diz, Via. Eles moravam aqui perto e ouviram explosões. Havia notícias de uma guerra que envolvia o mundo inteiro.
- O mundo destruído? Mas ele está aqui, perfeito. O que aconteceu com eles?
- Passaram aqui três dias, lembrando cada minuto de suas vidas e cantando. Ele escrevia tudo o que lembravam e guardava nos potes.
Como eles, nós passamos três dias nesta caverna. Lendo as vidas de pessoas que aqui estiveram em outra Era, conversando sobre o mundo, sobre nós, e comendo as plantas que o mar nos trazia.
O gosto do tempo enche estas paredes úmidas e cada palavra escrita, naquela língua ancestral, parece estar impressa na caverna. Aqui há um pedaço do mundo que eu e você não conhecemos.
O mundo havia acabado, então ...
Nas terras profundas, acreditava-se que nós descendíamos da raça que vencera uma grande guerra, que envolveu bilhões de pessoas. Mas não se falava que o mundo havia sido destruído ... E nós éramos tão poucos! Onde estariam os bilhões derrotados?
No terceiro dia, o mar começa a invadir violentamente a caverna. Envolvidos, como estamos, não percebemos a fúria com que ele lutava para guardar aquele segredo. O mar veio, e tomou de assalto a caverna. As saídas estão, agora, fechadas, e nós recuamos até uma parede em que um visgo inexplicável nos prende.
- O mar vai nos engolir, Walah.
- Como aconteceu com o homem e a mulher daquela história.
- Mas nós não vamos deixar nada para os outros, como eles fizeram. Ninguém vai saber que estivemos aqui.
- Ah! Via. Alguém vai saber. O tempo anda a favor da história, e não contra ela.
Sentamos e cantamos as músicas que aprendemos na infância até o mar tomar conta de tudo e nos envolver como se a caverna fosse um útero, grávido de eternidade.
Permaneço na insônia, enquanto o frágil equilíbrio do seu sono se rompe. Você acorda, como se nascesse novamente ...
- Que sonho estranho!
Você, então, se fez silêncio. E contempla.
- O mar tomava conta de tudo ... tudo ... Eu e você estávamos morrendo, sei lá – nascendo de novo ... Mas era outra época.
- Fique calma! Por mais real que pareça, foi só um sonho.
Não conseguimos dormir mais.
- Ligue a TV. Pode estar passando alguma coisa interessante.
- Eu ligo, e o noticiário diz que o mundo acabou. Está em guerra. O fim de tudo que construímos, o quase.
As explosões começam e agora estão perto ... Nosso tempo é pouco.
Muito pouco.
Os próximos três dias sem dormir serão nossa Eternidade ...
(Parte do livro
"Viajante Noturno", de William Mendonça, disponível para download gratuito no site. Direitos reservados.)