RECORDAÇÕES DE UM FÃ
Ou por que artistas são
apenas pessoas que fazem arte
Se há uma coisa muito legal que meus quase 25 anos de jornalismo me deram – e que agradeço sempre – foi a possibilidade de encontrar e entrevistar muita gente que admiro, falar com alguns ídolos da adolescência, viver meu lado fã, mesmo que sob o manto de “sério profissional da imprensa”. Mesmo atuando em cidades que sempre estiveram fora do circuito, como Itaboraí e Tanguá, tive a sorte de cobrir grandes eventos, ser amigo dos produtores e ter acesso aos bastidores. Também acompanhei visitas de personalidades políticas do tipo que não nascem mais, como Leonel Brizola e Nelson Carneiro.
No meio disso tudo, pude conhecer duas personalidades fundamentais para o meu trabalho artístico, que sempre correu em paralelo ao jornalismo: o cantor e compositor Lô Borges e o poeta Chacal. Posso até dizer que, fora das entrevistas, tive também conversas marcantes (pelo menos para mim) com essas feras, que só fizeram aumentar a admiração que eu já tinha.
A poesia de Chacal conheci no início dos anos 80, quando eu ainda escrevia poemas baseados em modelos do século 19. Foram principalmente os versos de Chacal e de outros poetas da mesma geração, como Ana C. e Afonso Henriques Neto, que finalmente me apresentaram à modernidade. Lá nos idos de 1987, quando comecei a falar poesia em público, eu nunca imaginaria que um dia, no final de 2010, eu iria dividir o palco com o mestre Chacal, na noite de poesia do evento ItaboraRio.
Antes, em 2003, noutra apresentação de Chacal em Itaboraí, ganhei do próprio algumas palavras de incentivo e o livro “A vida é curta para ser pequena”. Lembro do cara sentado no meio fio de um daqueles canteiros da Praça Marechal Floriano, enquanto o show rolava nas escadarias da Igreja. Mas foi após a apresentação de 2010 (foto) que realmente conversei com Chacal, na Casa de Cultura Heloísa Alberto Torres – e pude ouvir algumas dicas desse desbravador que tem mais de 40 anos falando poesia na rua, na praça, nos teatros, por aí.
Na mesma casa de Cultura, acho que até no mesmo banco que fica voltado para o jardim interno, também fiquei alguns minutos ao lado de Lô Borges. Para um cara que cresceu ouvindo os mineiros do Clube da Esquina, que toca e canta “Equatorial”, “Vento de Maio”, “Para Lennon e McCartney” e todos os clássicos do Lô em casa, nas horas de ócio, entrevistar o cara não foi missão fácil. E olha que talvez haja poucos artistas tão sem marra e sem frescura quanto Lô Borges. Lembro, por exemplo, que outro expoente do Clube da Esquina, Flávio Venturini, um ano antes, mostrou-se obsessivo com a qualidade do som, a arrumação do palco, etc, reclamando de tudo. Já Lô, ao contrário, fez como os romanos: veio, viu e venceu, sem precisar dar chilique.
Com Lô Borges, que distraidamente lia um jornal enquanto via a tarde cair em Itaboraí, tive um diálogo insólito, que só um jornalista/fã poderia ter. O compositor de “Paisagem na Janela” sacou um cigarro do bolso, olhou pro lado e pediu:
- Aí, cara, tem fogo?
E eu, perdido nas melodias que rolavam em minha cabeça, respondi:
- Não, não ... Desse mal eu não morro.
Até hoje imagino se haveria hora pior para uma campanha anti-tabagista, mas acho que um artista que influenciou a música que faço, com seu jeito autodidata genial de compor, merecia do fã/jornalista, pelo menos, a mais absoluta sinceridade. Coincidência ou não, a passagem de Lô por Itaboraí, naquele ano, aconteceu quando se iniciava para o artista uma ótima fase criativa. Como ele mesmo disse em 2012, o artista compôs e gravou mais nos últimos dez anos do que em toda a sua carreira até 2002.
Lembro também da tarde de autógrafos, numa loja de instrumentos musicais que patrocinava o show, e de Lô Borges subindo para a praça de Itaboraí, preocupado não com o show, mas com o resultado do jogo do Cruzeiro, que estava acontecendo naquele momento. O “trem azul”, afinal, tem prioridade.
Poderia falar de gente também especial e acessível, como Dinho Ouro Preto, Dado Villa-Lobos, o sempre presente Toni Platão, os caras do Barão Vermelho – tantos outros que vieram à cidade fazer shows de conscientização, produzidos com a cara e a coragem por Sérgio Espírito Santo. Mas Lô Borges e Chacal, por essa relação estrita com o que leio/escrevo/escuto/componho, mostraram que artistas são apenas pessoas que fazem arte - simples assim, sem frescura, sem exigir “toalhas brancas” ou qualquer bobagem do gênero.
Quando um artista, atleta, homem público ou, até mesmo, um jornalista, começa a se achar um deus ou um ídolo, perde a empatia e começa a cavar a própria sepultura. That´s life, baby.
(Publicado na edição nº 400 do jornal O GRITO)