William Mendonça
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OCEANO 



   Quando acordei, o quadro ao meu redor havia mudado. Não havia mais o Dr. Mathew, tampouco a bela enfermeira Sarah, cujos olhos teimavam em me desafiar antes da operação. A sala em que me encontrava não parecia a mesma.
E eu também.
 
 
   Foram cinco anos de decrepitude acelerada. Eu considerava a morte como certa, desde que aquela doença havia entrado em minha vida, durante uma ronda pelas bases habitadas nos planetas do Sistema Y-47.
   Eu já estava com certa experiência em viagens estelares, oito anos de trabalho e dois de intenso treinamento. Cheguei a escrever dois compêndios sobre mineralogia em planetas de diversas configurações rochosas. O sétimo planeta daquele sistema era mais um item de rotina em meu currículo.
Bastava cuidado e precaução ...
   Mas não os tive. Simplesmente releguei a segundo plano o fato de nunca ter estado naquele lugar. Nossa base ficava em uma das poucas porções de terra do planeta, conhecido na Frota como Oceano. Era uma base de pequeno porte, com um grupo de pesquisadores que tentava descobrir a consistência, a formação, a flora e a fauna daqueles profundos e infinitos mares, que se estendiam por quase todo o planeta.
   Na Terra, os mares também já estavam habitados pela sociedade humana - a solução encontrada para a falta de espaço sobre a superfície. Uma classe especial de pessoas fora criada: os Nautas. Eles raramente subiam à superfície e praticamente mantinham contato apenas com as outras cidades submarinas.
Oceano, por isso, era um planeta promissor. Relativamente próximo à Terra e com uma extensão de mares poucas vezes vista no espaço. Todo o trabalho dos pesquisadores dizia respeito às fontes de alimento e às implicações da gravidade 1.5 do planeta.
   Chegamos à base onde apenas Max Krieger, meu colega geólogo, nos aguardava.
   - Estão todos espalhados pelo planeta há mais de uma semana e não tenho notícias, Comandante Arlen. Não soube o que fazer e fiquei aguardando a chegada de sua nave, para que me ajudassem - disse, atônito, o geólogo.
   Meu comandante era um homem passional e rude - geralmente brusco, e sempre disposto a brigar por suas convicções - mas, também, sempre era correto. Sem qualquer consulta aos subordinados, dividiu nossa equipe em três duplas de resgate e uma para ficar na base. Cada dupla de resgate deveria encontrar um dos pesquisadores desaparecidos, enquanto eu e a Dra. Seles deveríamos ficar na base e observar Krieger, que parecia apático.
   Neste tempo, ouvimos várias histórias do geólogo sobre as noites apavorantes de Oceano, com ventos, tempestades, animais furiosos tentando invadir a base, e coisas assim ...
   - É uma loucura! As noites são longas, com ventos ensurdecedores. Não há como deixar os alojamentos, por isso não compreendo o sumiço da equipe – todos já deveriam ter voltado há um dia, antes que anoitecesse.
   A apatia de Krieger, no entanto, era preocupante. Ele parecia vazio. Durante a semana em que a equipe não manteve contato com a base, ele sequer teve a iniciativa de pedir que acelerássemos nossa chegada. Sua dificuldade em organizar o pensamento também nos deixara apreensivos. Um detalhe apenas a Dra. Selles notou – seus olhos, antes de um azul vivo como o céu dos trópicos na Terra, estavam de um azul tão claro que quase chegava ao branco.
   - Krieger, o que houve com seus olhos?
   - Nada, doutora, pelo menos que eu saiba.
   - Estão mais claros ... Poderia ser efeito do Sol de Y-47?
   - Não acredito, doutora – argumentei – As características dessa estrela são muito semelhantes às do nosso Sol.
 
 
   Já havia anoitecido e nossos grupos de buscas não voltavam. Krieger parecia apavorado e se escondeu na sala de jogos, dentro de um armário. Eu não entendia o porquê, já que a noite de Oceano era como uma daqueles noites terrenas – de Lua cheia e grilos cantando.
   Era como um delírio. Em três horas de desespero, Krieger começou a falar coisas sem sentido e a chamar a Dra. Seles, seis anos mais nova que ele, de mãe.
   - Não deixe que eles me machuquem, mãe. Eu não fiz nada! Já está tudo pronto, tudo pronto ...
   - Doutora, ele está louco!
   - Está definhando, Dennis, e delirando. Sua capacidade mental está totalmente afetada – é como uma embriaguez.
   Depois de uma elevada dose de sedativos, ele dormiu – o que aparentava não fazer há várias semanas.
 
 
   Com o amanhecer, Krieger voltou á sua apatia e nossa equipe continuou sem dar qualquer notícia. Duas semanas em Oceano haviam se passado sem que nada de novo acontecesse – apenas o desespero de Krieger aumentava. Martha Seles, que antes eu pouco conhecia, já era como uma amiga de décadas para mim. Inteligente e segura, mas especialmente sensível, ela a cada dia me conquistava mais um pouco.
   - Dennis, não podemos ficar parados vendo Krieger perder toda sua sanidade e sem saber onde está o grupo avançado.
   - Eu sei, Martha. Mas se eles, que têm anos de treinamento em resgates como este, não conseguiram voltar ainda, o que nós podemos fazer?
   - Caminhar, Dennis. Caminha, pelo menos ...
   Ela tinha razão. Mais de duas semanas confinado estavam me deixando estressado e me sentindo inútil. Afinal, eu não poderia me perder naquele planeta sendo geólogo e cartógrafo.
 
 
   Depois de dois dias, chegamos à primeira praia – uma visão fabulosa. Uma infinidade de água se estendia diante de nossos olhos, como já não víamos na Terra. Martha a cada dia parecia ainda mais com uma daquelas deusas de seus antepassados celtas – a Mãe Terra – e ganhava um ar leve, como se a qualquer momento pudesse sair flutuando pelo planeta, mesmo com 1.5 de gravidade.
   - Eu queria poder mergulhar nesta água, Martha. Ou, pelo menos, provar deste líquido perdido a tantos anos-luz da Terra.
   - Mas nós não sabemos os riscos, Dennis.
   - Ah! Se fosse na Terra, nós nos banharíamos nus nesta imensidão – e eu tenho que confessar que seu corpo seria uma visão maravilhosa para mim ...
   Martha pareceu pensar durante alguns instantes e sentenciou:
   - Seria não, será!
   Ela, então, despiu-se lentamente e entrou na água. Mesmo com tudo o que se seguiu, não tenho dúvidas de que aquele momento valeria a vida, que quase perdi naquele planeta.
   Fiz o mesmo que ela. Naquela água incrivelmente morna – como se fosse feita sob medida para nós – nos entregamos um ao outro, cada poro, cada molécula, cada pequenino impulso. E era a primeira, e última vez, em que eu partia para um relacionamento com uma tripulante, em oito anos na Frota. Somente ela me fez sentir vida, calor e segurança.
   Não tive medo. Sabia que era para sempre.
 
 
   Fomos encontrados a poucos passos da morte, por um grupo de busca da nave Pandora – que se dirigiu àquele setor devido à falta de informações sobre a nossa nave. Éramos os únicos sinais de vida na superfície do planeta rastreados pela nave, além de Max Krieger. Não sei o que, exatamente, aconteceu após aquele banho de mar em Oceano, mas formos achados nus, desmaiados, a mis de 20 quilômetros da praia.
   Uma semana havia se passado.
Martha não resistiu muito tempo – seu corpo reagiu mal ao longo contato com o solo do planeta e ao tempo sem alimentação. Por pouco também não morri, e por cinco anos pensei seriamente que talvez tivesse sido melhor se eu morresse com Martha.
   O resto da equipe desapareceu. Max Krieger, único que chegou a voltar à Terra junto comigo, morreu antes que surgisse uma esperança de cura. Eu continuei definhando e todas as noites, pesadelos e lembranças inexplicáveis me atormentavam. Fui me esvaindo, me consumindo ...
   Soube, nas minhas poucas horas de lucidez durante o dia, que o mal de Oceano, como ficou conhecido, consumia o sistema nervoso dos infectados lentamente e, provavelmente, era transmitido pela água do lugar. Como uma droga, que nos levava a fazer e sentir loucuras. Afetava também a íris dos olhos, que descoloria com o tempo.
   Oceano foi isolado. Assim como eu.
   Isolado por cinco anos até que pudesse ser realizada uma operação experimental.
 
 
   Cinco anos. E a sala já não parece mais a mesma. Ninguém conhecido. Só vazio e solidão.
   - Seu sofrimento acabou, Dennis. Estamos juntos de novo!
   - Martha!
 
 
   Por que esperei tanto para morrer?


(Parte do livro de contos "Viajante noturno", de William Mendonça, disponível para download gratuito. Direitos reservados.)

 
William Mendonça
Enviado por William Mendonça em 29/07/2011
Alterado em 17/05/2021
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