ORFEU, O MITO REINVENTADO
Jorge de Lima e Vinícius de Moraes
deram novas vidas ao mito grego
Na segunda geração de poetas modernistas brasileiros um mito grego exerceu um fascínio especial: Orfeu. Também, pudera: um semi-deus que se dedicava à música, capaz de atos de heroísmo a toda a prova, tão apaixonado por uma mulher que vai encontrá-la no reino dos mortos. Lá está ele entre os argonautas, ajudando Jasão a chegar até o velocino de ouro. Traz em seu espírito o dom da tragédia e o dom da música.
Os modernistas brasileiros reinventaram Orfeu em duas obras que marcaram época pela qualidade e pela antecipação de tendências. Em 1952, o poeta alagoano Jorge de Lima lançou sua obra mais surpreendente, um épico psicológico chamado “Invenção de Orfeu”. Quatro anos depois, em 25 de setembro de 1956, estreava no Teatro Municipal do Rio “Orfeu da Conceição”, o mito transposto para o ambiente das favelas cariocas por Vinícius de Moraes.
Tenho uma relação de amor profundo pelas duas obras. “Invenção de Orfeu” é meu livro de cabeceira, levo para todos os lugares e não é incomum que me vejam com o exemplar de bolso em uma fila de banco, no ônibus e na sala de espera de um médico. É um livro inesgotável. A cada vez que você lê, ele revela milhões de novos sentidos, palavras, imagens que tinham passado despercebidas na leitura anterior. O poeta que sou hoje tem muito deste Jorge de Lima surrealista.
Confesso que, nos meus anos de colégio, Jorge de Lima era o menos importante dos modernistas. Não gostava dos textos compilados nos livros escolares. Ele, que começou parnasiano com seus XIV Alexandrinos, viajou pela poesia social, sempre hábil no jogo com as palavras. Só descobri “Invenção de Orfeu” através de Geir Campos, em seu “Pequeno dicionário de arte poética”, outro livro a ser lembrado. Lá estão, no verbete “Variantes”, dois sonetos do livro de Jorge de Lima – maravilhosos.
Procurei até encontrar. Rato de sebos, achei o exemplar de bolso que me acompanha até hoje. O engraçado é que antes de mim, o livro pertenceu a um estudante que estava obcecado em provar possíveis plágios de Jorge de Lima, considerando esta uma obra menor. Abro as páginas e sempre me deparo com alguma anotação, e duvido muito que o rapaz tenha sentido o prazer de ler um texto tão vasto. Composto à moda camoniana, “Invenção de Orfeu” tem dez cantos e conta uma história épica sob um novo ponto de vista: a alma humana. É pura música, associações desconcertantes, surrealismo, poesia brasileira da melhor qualidade.
Já “Orfeu da Conceição”, que reuniu pela primeira vez dois gênios brasileiros – Vinícius de Moraes e Tom Jobim – é um marco (às vezes desprezado) do nosso teatro. Cinqüenta anos depois, vivemos a época dos experimentos, do vale-tudo literário e teatral. No Brasil dos anos 50 reunir um elenco apenas de atores negros, para recontar um mito clássico transposto para uma favela, com certeza, era um passo gigantesco. Tanto que a crítica – sempre ela – em geral não gostou do que viu.
Mas a importância de “Orfeu da Conceição” não pode ser medida pelas críticas equivocadas da época – e sim, pelos seus anos de história. Como ressaltou o jornalista João Máximo, foi aí “que começou a nascer o teatro musical brasileiro (...) que integra fala, canto e dança para contar uma história com início, meio e fim”. Outro gênio fazia parte da equipe, o arquiteto Oscar Niemeyer, que assinou o cenário daquela montagem – que foi aplaudido quando se abriram as cortinas para o primeiro ato.
Tom Jobim entrou no projeto depois da desistência de Vadico, que considerou dar música às palavras de Vinícius uma tarefa grande demais. Infelizmente, as duas transposições para o cinema da obra não deram à dupla Tom e Vinícius o espaço que a montagem teatral original teve. Em “Orfeu do Carnaval”, de 1958, dirigido por Marcel Camus, não estava a “Valsa de Eurídice”. Por incrível que pareça, o filme transformou a canção “Manhã de Carnaval”, de outra dupla, Luiz Bonfá e Antonio Maria, em sucesso internacional. Ganhou até Oscar, mas Vinícius não gostou.
A filmagem mais recente, de 1999, trouxe Toni Garrido, cantor do grupo Cidade Negra, como Orfeu. O diretor Carlos Diegues se socorreu de Caetano Veloso para criar novas músicas para o filme, talvez por considerar as composições originais desatualizadas. Com isso, tirou muito da alma de Tom e Vinícius e perdeu um pouco do sentido em resgatar no tempo um texto tão importante.
De vez em quando passo por aquelas crises: “e se eu nascesse em outra época?” ou “se eu tivesse uma máquina do tempo?”. Pois se eu viesse ao mundo uns quarenta anos antes ou passasse pelo Rio de Janeiro dos anos cinqüenta, certamente compraria a primeira edição de “Invenção de Orfeu” e estaria lá, no Teatro Municipal, para assistir a estréia de “Orfeu da Conceição” – textos fundamentais nas letras brasileiras.
(Direitos reservados ao autor)
William Mendonça
Enviado por William Mendonça em 25/09/2006
Alterado em 18/05/2021