William Mendonça
POESIA, PROSA, MÚSICA E TEATRO
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O ÚLTIMO CRÉDITO

A noite da cidade pode reservar
algumas estranhas surpresas
 

     Era o seu último crédito. Sabia que algo estava para acontecer – e sempre que a intuição surgia, não conseguia ignorá-la. Uma sensação de angústia, de um perigo iminente, dominou seu espírito e, durante quase dez minutos, andara por toda a avenida em busca de um telefone público que funcionasse ... E nada. 
     - Por que será que essas coisas nunca funcionam quando a gente precisa? – reclamou, em voz alta. 
     A noite caminhava, rápida, para a madrugada, as ruas mudavam sua fauna – um caminhão de lixo passou ao seu lado, lembrando o quanto tudo é descartável, tudo apodrece e acaba. 
     Era o seu último crédito. Olhou o cartão com uma imagem moderna de algum santo e penso: “Meu filho coleciona cartões – ia gostar deste”. O santo da vez era São Judas Tadeu, padroeiro das causas impossíveis. 
     - Impossível é encontrar um orelhão funcionando nesta cidade! 
     Seguiu em sua angústia particular, que comportava em si mesma a angústia de todos, os medos irracionais e neuroses de todos, as armadilhas da cidade. Um grupo de travestis passou, provocando, mas ele nem percebeu. Queria ligar, era urgente. 
     Virou uma esquina e viu um orelhão ocupado. Alguém falava aos berros, gesticulando muito. “Aquele está funcionando, maravilha!” Foi até lá, mas a rua estava completamente deserta. Como iniciar uma fila num telefone público, quase de madrugada, numa rua deserta? Apesar da dúvida, a necessidade de ligar era absolutamente urgente, e não houve outro jeito: parou atrás do homem que discutia com alguém nervosamente. 
     Podia ouvir algumas palavras entrecortadas e a fúria do homem começou a lhe dar medo. 
     - Sua desgraçada!... É assim que você paga pelo prazer que eu te dei? Quem você pensa que eu sou? 
     O homem nem percebera a sua presença. Ao que parece, a amante lhe dera um fora e ele estava furioso. Mas quem, numa situação dessas, resolve ligar para casa e discutir pelo telefone ... telefone público, ainda por cima!? A discussão estava se alongando e a angústia, a necessidade louca de ligar aumentava ainda mais. “E se eu procurasse outro orelhão?”. Não, aquele ainda estava funcionando, era a melhor chance de ligar para casa. Era o seu último crédito. 
     De repente, o homem bateu com o fone no gancho e esbravejou: 
     - Cachorra! Desligou na minha cara! Eu mato aquela desgraçada! 
     O homem virou-se e só então percebeu a presença de alguém iniciando uma insólita fila quase à meia-noite. 
     - Tá olhando o que, meu irmão? 
     - Nada, eu só preciso usar o telefone ... 
     - E fica ouvindo a conversa dos outros, cara!? Tem vergonha não? 
     - Só tava esperando você acabar, só isso! 
     O homem abaixou a cabeça, respirou fundo, e tentou se controlar. Depois de uma pausa, autorizou: 
     - Tudo bem, liga aí! Depois eu ligo de novo ... 
     - Obrigado! 
     A angústia iria terminar. Tirou o fone do gancho. Estava nervoso. O número chamou várias vezes antes que a mulher, com a voz embargada e sensivelmente nervosa, atendesse: 
     - Que droga, Anselmo! Eu já não te disse que acabou? O tempo com você foi bom, mas eu não consigo mais viver essa vida dupla, entende? Eu tenho um filho, não vou largar o meu marido ... Ele é até um cara legal ... Vê se arruma outra, Anselmo, que eu preciso dar um jeito na vida! 
     As pernas tremeram ... 
     - Rita!? Rita, é você? 
     - Antônio!? – uma pausa, como se ela se desse conta da situação – Antônio, eu pensei que fosse outra pessoa ... 
     - Percebi ... 
     Seu estômago ficou embrulhado. A angústia virou nojo. Deixou o fone cair e olhou para o lado. O homem, já não tão nervoso, ainda esperava. 
     - Ô Anselmo! 
     - Como é que você sabe o meu nome, cara? 
     - É pra você ... Mas fala rápido, que é o meu último crédito. 

(Direitos reservados ao autor. Publicado pela primeira vez em 25/03/2006 no blog do autor)
William Mendonça
Enviado por William Mendonça em 15/09/2006
Alterado em 17/05/2021
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