DISCUSSÕES SOBRE O COMPORTAMENTO SUICIDA
O cachorro atravessa a estrada
porque não tem consciência do risco
Depois de uma noite em claro, movida por uma dor incontrolável, pela perda de alguém que amava ou por distúrbios mentais que nós, mortais, não compreendemos, uma pessoa decide tirar a própria vida. E há tantas formas de fazê-lo que ela pode até escolher. A morte surge com o canto, atraente, de que a dor acaba quando a vida acaba ...
É claro que entre o pensamento desesperado, da intenção de cometer suicídio, até realmente tirar a própria vida, existe um abismo – cheio de limites morais, medos, desejos, paixões, que servem de âncoras ao mundo real, à vida, por pior que seja. Está aí o CVV (Centro de Valorização da Vida), que tantas pessoas já salvou com um telefonema, uma conversa.
Não discuto a decisão suicida num momento de crise – mesmo sem concordar pois sei, por razões espirituais, que este não é o caminho, nem solução para qualquer problema.
O que não compreendo é o comportamento suicida diário, o ato de colocar-se em risco constantemente, de buscar o perigo. As pessoas lógicas tomam precauções de segurança: cinto, camisinha, capacete, limite de velocidade, pára-quedas, colete salva-vidas, etc. Elas podem não livrar você da morte, mas diminuem o risco.
No entanto, vejo diariamente uma legião de suicidas pelas cidades, oferecendo-se à morte com estranho prazer. Desde o motociclista que não usa capacete e o motorista embriagado ao pedestre que atravessa uma estrada sem usar a passarela. A pessoa que, pelas circunstâncias, precisa atravessar uma estrada onde não há uma passarela, não tem opção. Mas aquela que “escolhe” se arriscar entre os carros, ônibus e caminhões, é temerária – e suicida.
Nas pequenas coisas do dia-a-dia você percebe a diferença. O suicida toma remédios sem receita, mexe na eletricidade da casa sem desligar o disjuntor, transa sem camisinha, bebe antes de dirigir, fuma, usa drogas – ou, simplesmente, se coloca em risco gratuitamente. Isso começa na infância e se agrava na vida adulta. É como se viver fosse apenas um esporte radical, um “bungee jump” eterno, no qual o cabo nunca arrebentasse.
Os próprios esportes radicais fazem parte desse comportamento mas, vá lá, as pessoas que os praticam profissionalmente tomam várias medidas de segurança, diminuindo os riscos. São suicidas em potencial, é verdade ...
O ser humano deveria ser imune a isso, porque é dotado de raciocínio e da capacidade de medir os riscos. Os suicidas comportamentais classificam “os outros” como covardes, otários e coisas do gênero. A carapuça não me serve – até porque não faço uma apologia da covardia, e sim do bom senso. Cansei de ver meus ídolos morrerem de overdose, meus vizinhos atropelados, meus amigos em batidas de carro, meus parentes por males causados pelo cigarro.
Moro perto de uma estrada e vejo, todos os dias, a maioria das pessoas atravessarem por baixo da passarela – que foi construída ali depois de vários atropelamentos e mortes e manifestações. Muitos dos que exigiam uma passarela não a utilizam. É um prazer quase mórbido.
Quase todos os dias, também, vejo cachorros mortos na beira da estrada – as vísceras espalhadas, corpo esmagado ou feito em pedaços. Sei que o efeito de um atropelamento em um ser humano não é muito diferente, mas o cachorro pelo menos não tem culpa: ele só atravessa a estrada porque não conhece os riscos.
(Direitos reservados ao autor - Publicado pela primeira vez em 26/11/2005 no blog do autor)
William Mendonça
Enviado por William Mendonça em 14/09/2006
Alterado em 17/05/2021