A ÚLTIMA QUIMERA
Se algum dia, um espectro me surgisse,
seria assim – simplesmente um poeta
Naquela noite encontrei Augusto dos Anjos. Era uma praça – não, uma praia! O poeta estava sentado, olhando o mar como se buscasse entender o sentido de tudo. Parei, intrigado. Sentei ao seu lado e tentei fixar o olhar no mesmo ponto que ele observava, mas não podia alcançá-lo.
O olhar do poeta estava longe, como se fosse outro tempo. Pensei em falar alguma coisa, mas não consegui interromper o silêncio – bendito silêncio! Havia um reflexo tênue nas ondas que chegavam à praia, constantes, trazendo a música dos tempos, o ritmo de tantos versos ...
O poeta parecia não notar a minha presença, e continuava mergulhado em sua própria alma – um mar sem fronteiras. Se me fosse dada a chance de fazer uma única pergunta àquele homem, qual seria? Se eu pudesse me entender melhor através daquele ser tão diferente, o que precisaria ouvir?
Foi enquanto pensava nisso que Augusto dos Anjos levantou, lentamente, e caminhou até a água, como se flutuasse. Não deixava pegadas, não revolvia a areia. Olhei a silhueta magra daquele homem e pensei no quanto o espírito é mais forte que o corpo. Quantas derrotas teriam sido sublimadas apenas por aquele sopro de vida, aquela centelha.
Não pude deixar de pensar que, se algum dia, um espectro me surgisse – como o pai de Hamlet, nos muros de um castelo dinamarquês – seria assim, simplesmente um poeta, não um rei. Seria um homem humilde, que viveu as dores do mundo, para quem o reconhecimento só chegou depois da morte, não um poderoso mandatário de qualquer nação.
Deus sabe que eu não levaria a sério os reis, mas que respeito os poetas. Eles ajudaram a moldar meu espírito, me mostraram as palavras e o que se esconde por trás delas. Não o pai de Hamlet, é certo, mas talvez o próprio Shakespeare, ele sim um poeta primoroso. Ou Pessoa – qualquer um de seus múltiplos eus. Ou Bandeira, Shelley, Neruda, Maiakovski ... Sim, um deles viria me trazer uma mensagem ou apenas para me mostrar que a vida continua.
Então, por que ele – Augusto, em seu silêncio, rumo ao mar como se não me notasse, filho de outro tempo? Por que ele, justo quem cria no fim de tudo ao último sopro de vida, na supremacia do verme sobre o homem? Por que o poeta das quimeras enterradas, das catedrais imensas destruídas – uma voz que sei de cor, de tanto ruminar seus versos? Antes que o poeta tocasse o mar, levantei-me e gritei (à minha volta, as imagens ficavam distorcidas, tudo perdia o foco).
- Poeta, por que você aqui, no meu sonho!? – eu sabia, só tinha direito a uma pergunta.
Ele virou-se lentamente, sim, como um espectro. Veio à lembrança algo como espírito dos natais passados, de Dickens. Senti um frio profundo me invadir – teria eu voltado no tempo para encontrar os meus próprios medos? Qual seria o tempo real, o aqui e o agora? Perdi a momentânea consciência de que tudo era um sonho e cheguei mais perto para ouvir a resposta do poeta.
Num instante, já era o início do século vinte, suas roupas, seus periódicos, sua falta de esperança. Gente surgia – casas, ruas, veículos, tudo se construindo à minha volta. Augusto pareceu ganhar vida – o corpo renovado, o ar de volta aos pulmões, a matéria mostrando seu valor ... Percebi que, então, era eu o espectro – eu o fantasma do pai de Hamlet – só que não um rei, mas um simples poeta.
E Augusto, finalmente me olhando nos olhos, respondeu meu grito com outra pergunta:
- Poeta, por que você aqui, no meu sonho!?
....................
Eu não sabia a resposta ... Mas de que importava isso se meu olhar, finalmente, conseguira alcançar o ponto onde antes se perdia o olhar do poeta?
(Direitos reservados ao autor - Primeira publicação em 07/03/2005 no blog do autor)
William Mendonça
Enviado por William Mendonça em 12/09/2006
Alterado em 17/05/2021