William Mendonça
POESIA, PROSA, MÚSICA E TEATRO
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FÊNIX

   Daqui, séculos e mais séculos de história me dizem bom dia ...
   Chegar ao topo não foi o mais difícil – tampouco o mais importante ou o que me deixou mais feliz. Difícil é resistir ao chamado do tempo que repousa nas planícies, abaixo, e não saltar no abismo para um vôo sem retorno.
   Abismos ... O inebriante fascínio de rodopiar na borda – seja ela a borda de um penhasco, ou a porta de um abismo negro. O fascínio da vertigem ...
   Eu voaria de encontro ao tempo que preenche este abismo, este vale longo e quase sem fronteiras, e tocaria a eternidade, nem que por apenas um instante – se não fosse o medo, que corta-me as asas.
   Aliás, do ponto de vista dos pássaros, o pouso deve ser mais atemorizante do que o salto no abismo. Voar não é desafio, pelo menos não depois do primeiro passo no desconhecido.
   Já pousar é nos rendermos à nossa inevitável necessidade da terra – é ser vencido, em mais uma batalha, voltar à casa materna quando já se acredita que quem se lança no abismo pode tudo; pois não pode ...
   O vôo no abismo pode ser o primeiro ato de infinita coragem, e o último de breve insensatez, mesmo para os pássaros – que são tragados de volta ao solo pelo cansaço, reduzidos ao seu simples lugar de prisioneiros.
   Prisioneiros do mesmo abismo ...


   Foi tudo um erro.
   A loucura que se abateu sobre Vert, nosso navegador, causou tudo. Ele foi exigido demais, desde que aquela falha no programa de retorno à Terra o obrigou a assumir “no braço”, como diriam os antigos, o nosso retorno.
   Já não era nossa primeira volta da base terrestre em Marte – e quantas outras equipes fizeram o mesmo, ao longo dos pouco mais de 10 anos de colonização do planeta. Mesmo sendo da geração mais avançada da frota nossa nave falhou em um momento crucial – e por pouco não ficamos sem perceber a falha na programação e nos perdemos pelo sistema. Vert, sempre atento, sentiu que o costumeiro céu da volta para casa parecia ser visto de outro ângulo naqueles dias.
   Vert, então, assumiu a volta. Eu e Crika fizemos de tudo para auxilia-lo, mas sabíamos pouco do trabalho de navegação – que Vert fazia sem retoques.
   Cinco dias sem um momento de sono, olhos fixos nos instrumentos, transformaram Vert em um farrapo, que ainda tinha a responsabilidade de nos levar para casa. Lembrei de minha mãe, perdendo noites de sono para dar ao filho o melhor de si.
   Agora, minha mãe era um homem – que não podia falhar ...


   Estupefatos, vimos Vert se levantar de sua cadeira – após sete dias de trabalho ininterrupto – e simplesmente esbofetear o equipamento em uma acesso de fúria devastador.
   Com muito custo consegui controla-lo, mas Vert parecia um cão raivoso. Quando sua energia pareceu acabar, ele chorou, como uma criança sem presentes na noite de Natal.
   - Eu nos matei, Francis! Eu nos matei!
   Chorava e repetia a mesma frase, como um texto decorado, até conseguir dormir. Ainda devíamos estar longe da Terra, e ele precisava de um descanso para fazer o resto da jornada.
   Fiquei com o plantão, mas adormeci. Acredito que dormi por apenas alguns instantes – frações de segundo em que tudo pode acontecer. Quando voltei a mim, só tive tempo de ver alguém em um traje espacial flutuando fora da nave.
   - Crika! Crika! Vamos, acorde!
   - O que foi, não dá nem pra descansar um pouco?
   - O Vert se ejetou ...
   - O quê? Que loucura é essa?
   Crika levantou em um pulo e quase rompeu a escotilha.
   - Vert! Não, você não podia te feito isso ... Meu Deus!
   - Não podemos fazer mais nada, Crika. Se um de nós tentar traze-lo de volta, vai vagar pelo espaço como ele, sem destino.
   - Mas por que essa loucura!? Meu Deus, por quê?
   O silêncio cobriu a nave – sabíamos que, tanto quanto Vert, nós vagávamos sem destino. A Terra era só utopia, quando todo o espaço nos servia de abismo, em um vôo cego.
   - Talvez ele esteja ao alcance dos nossos comunicadores, Crika.
   - Isso! Vamos tentar, pelo menos. A freqüência é esta! Vert! Vert! Responda, se puder ouvir, responda por favor, Vert!
   - Crika, é você?
   - Vert, fale comigo!
   - Crika, estou voando ... a morte é linda!
   - Não, Vert, não! O que houve? Por que essa viagem sem volta?
   - Eu matei vocês, Crika, matei ... Eu te amo, não posso viver sabendo que te matei. Eu te amo!
   - Mas eu estou viva, Vert! Eu estou viva, sentindo a mesma dor que você. Por que você fugiu, quando eu queria você comigo?
   - Não fugi, só não posso ver você morrer – eu não agüentaria sua dor. Eu errei e você vai morrer – Não, eu não posso!
   - O que houve? O que você fez, Vert?
   Houve um silêncio que encheu de eternidade o momento. O tempo estava acabando – para nós e para Vert.
   - Crika, não me odeie ...
   - Nunca, eu não posso te odiar.
   - Os instrumentos estão travados – vocês estão indo em direção ao sol. Deus! Vocês vão virar uma grande tocha – tudo culpa minha! Não sei o que houve, juro que não sei!
   - Podia ter conserto ...
   - Não, não tinha. E eu não posso ver você morrer.
   Crika caiu no chão da nave. O mundo desabara com ela, e eu junto. Vert estava longe e nós inoperantes – seguindo pelo abismo.


   - Você ainda pode me ouvir, Crika?
   Ela podia, mas não conseguia falar ...
   - Crika, serei tocha antes de vocês! Estou rodopiando – lá embaixo tem um planeta. Deve ser a Terra – ainda é azul! Sempre quis pular de penhascos ... A queda é livre mesmo aqui, Crika. É tudo tão ... negro ... negro, como um abismo. Vou morrer – será antes de você, então te espero no céu. Ah! Meu Deus! Eu já estou no céu – que loucura, o céu é tão bom e nem sei se estou à direita ou à esquerda do Criador ... – Ele delirava, de uma forma cada vez mais intensa. Crika sentia a dor do ser amado, como se fosse sua – Crika? Estou caindo ... É um abismo que não termina, um vazio terrível! Me ajude! Eu não quero cair, Crika. Eu te amo, não quero cair!
   Olhei pela escotilha. Sentia na pele cada palavra de Vert – sabia que não estávamos seguindo rumo ao Sol e sim mantendo uma mesma distância do planeta azul, a nossa casa.
   - Crika, levante! Vamos, levante, menina! Acho que Vert não errou ... estamos orbitando a Terra.
   - E de que adianta, heim!? Ele está lá fora, morrendo porque acha que errou.
   - Ele devia estar tão cansado que pensou ter errado nos cálculos, quando na verdade acertou.
   - Não temos como salvá-lo? Ele já está tão próximo ...
   - Não ... Só podemos falar com ele, aliás, você pode. É a você que ele ama.
   A sempre altiva Crika, que tantas vezes vi passar pelos corredores da nave com seu porte ao mesmo tempo leve e imponente, agora chorava. Frágil. E eu a admirava ainda mais por isso.
   - Vert, fale comigo! Estou aqui.
   - Não me deixe agora, Crika. Eu sou covarde, tenho medo da morte. Vou queimar – será que vai ser rápido? Me ajude!
   - Não te deixo mais ... posso te ver daqui.
   - Então faz um pedido quando eu virar estrela ... Francis, amigo, fala comigo também. Não fique bravo por eu ter mandado vocês para a fogueira.
   - Vert, nós estamos em órbita. Você acertou, irmão – nos trouxe de volta para casa. Você devia estar tão cansado que pensou ter errado o programa.
   - É verdade, Francis? Vocês vão descer? Deus – que bom! Então vou chegar em casa primeiro. Crika! Olha pra mim! Está quente, tão quente ... será o inferno?
   - Vert, Vert ... – ela conseguiu apenas sussurrar.
   - Quando você chegar lá embaixo, junte minhas cinzas, Crika. Faz de mim uma Fênix. Eu te amo, lembre disso!


   Foi tão rápido.
   Não consegui ficar olhando a queda livre daquele que havia nos levado para casa. Crika sim. Ela contou até três e fez um pedido, como Vert queria.
   Descemos suavemente na costa da Austrália e fomos rastreados por um submarino inglês que estava na região. Quando botamos os pés no chão poeirento de uma cidadezinha portuária não havia cinzas.
   Crika não chorou mais. Era o seu jeito de dizer a Vert que ele havia se tornado a Fênix – dentro dela.
   Vert renascia em cada pássaro que passava, desavisado, por nossos olhos.
   Tínhamos voltado à Terra – a mesma prisão de sempre da qual Vert se libertou saltando no abismo ...


   Também fiz um pedido – e Vert, sempre amigo, não me negou. Agora estou aqui, no topo do mundo, contemplando o tempo, que parou diante dos meus olhos.
   Quase posso tocar o abirmo.
   Quase posso voar;


   Mas voar é para os pássaros ...


(Parte do livro "Viajante noturno", de William Mendonça, disponível para download gratuito. Direitos reservados.)
William Mendonça
Enviado por William Mendonça em 13/08/2011
Alterado em 17/05/2021
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